Diabetes tipo 1 na gestação
PLANEJAMENTO DA GESTAÇÃO EM MULHERES COM DIABETES TIPO 1
O planejamento da gestação em mulheres com diabetes tipo 1 é de suma importância para a redução de desfechos adversos gestacionais. Idealmente, antes da suspensão do método contraceptivo, é importante garantirmos um bom controle metabólico, atingindo um nível ideal de hemoglobina glicada (HbA1c) ≤ 6%. Para se ter uma ideia da importância de tais fatores, a ausência de planejamento adequado aumenta o risco de bebês grandes para a idade gestacional (GIG, acima do percentil 90 de peso) em cerca de 5 vezes e de macrossomia (peso fetal acima de 4000g) em 8,4 vezes.
Níveis elevados de hemoglobina glicada no início da gestação tem correlação direta com o aumento de diversas consequências indesejáveis. Um estudo evidenciou que quando as mulheres engravidam com HbA1c acima de 10%, o risco de malformações aumenta em 4 vezes. Outros estudos apontam que a chance de cardiopatias congênitas aumentam em cerca de 6 vezes quando comparamos gestantes com glicada de 9% e aquelas que engravidaram com o diabetes bem controlado, com glicada < 6%.
Mas não é apenas o nível da hemoglobina glicada que importa: é fundamental a atenção a outros fatores:
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Atualizar os rastreios de complicações microvasculares como retinopatia (por meio da avaliação do fundo de olho e/ou mapeamento de retina) e nefropatia (dosagem no sangue da creatinina e da relação microalbuminúria/creatinúria na urina);
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Investigar hipotireoidismo;
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Suspender medicações teratogênicas (ou seja, que possam causar malformações);
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Atualização vacinal;
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Discussão entre médico e paciente sobre os potenciais riscos e desfechos adversos que podem ocorrer na gestação mesmo em vigência de um bom controle, bem como as metas e cuidados, que devem ser mais rigorosos ao longo da gestação;
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Adequar a terapia para que a transição para o período gestacional seja mais prático.
QUAIS OS RISCOS ASSOCIADOS AO DIABETES TIPO 1 NA GESTAÇÃO?
Os riscos associados ao diabetes tipo 1 na gestação são comuns àqueles encontrados em outras situações de hiperglicemia na gestação, como o diabetes mellitus gestacional ou no diabetes tipo 2. Os principais eventos adversos relacionados ao bebê que queremos evitar com o tratamento intensivo do diabetes durante a gestação são:
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Macrossomia (Peso ao nascer maior que 4000g);
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Bebê grande para idade gestacional (Acima do percentil 90);
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Polidrâmnio (aumento do líquido amniótico)
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Traumas durante o parto;
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Maior risco de abortamento;
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Prematuridade;
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Desconforto respiratório do recém nascido;
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Hipoglicemia neonatal;
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Necessidade de UTI neonatal;
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Hiperbilirrubinemia;
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Óbito intrauterino
Vale o destaque, no diabetes tipo 1, para o maior risco de malformações congênitas, sobretudo de cardiopatias. Portanto, todas as gestantes com DM1 devem realizar um ecodopplercardiograma fetal entre 24 e 28 semanas de gestação para investigação.
Já com relação à mãe, existe um risco aumentado de pré eclâmpsia, que motiva a indicação do uso do AAS (75 a 100 mg/dia) a partir das 12 semanas de gestação; hipoglicemias devido ao tratamento intensivo e mesmo de cetoacidose diabética, uma vez que a gestação é uma situação de maior estresse metabólico materno, que pode propiciar até mesmo quadro de cetoacidose com glicemias mais baixas que as habituais, ou seja, menores que 250 mg/dL. Além disso, existe o risco da piora de complicações relacionadas ao diabetes, como da retinopatia diabética, por exemplo.
COMO É FEITO O SEGUIMENTO DE GESTANTES COM DIABETES TIPO 1?
O seguimento de gestantes com diabetes tipo 1 deve ser feito com a monitorização da glicemia capilar em pelo menos 6 aferições diárias: jejum, 1 hora após o café, pré almoço, 1 hora após o almoço, pré jantar e 1h após o jantar. Idealmente também deve-se realizar a aferição ao deitar e em casos selecionados, pode ser necessário a avaliação de glicemias em outros momentos do dia.
O ajuste das doses de insulina deve ser realizado a cada 2 semanas ou menos até a 30ª semana, quando o controle deve passar a ser semanal.
A periodicidade de realização de ultrassonografias para avaliação do crescimento fetal e o perfil biofísico fetal vão depender dos desfechos da gestação (ex: uma gestação com bebê no percentil 90 do peso ou mais pode requerer monitorizações mais frequentes).
No cuidado da mãe com diabetes, é importante não esquecermos de realizar a avaliação de retinopatia antes, no primeiro e terceiro trimestres e após a gestação. Em situações onde já exista algum grau de retinopatia, é importante o seguimento conjunto com o oftalmologista e a periodicidade de avaliação pode ser maior.
QUAIS AS METAS DE CONTROLE DO DIABETES TIPO 1 DURANTE A GESTAÇÃO?
As metas de controle do diabetes tipo 1 durante a gestação são diferentes das metas utilizadas ao longo da vida, com maior rigor, visando a redução do risco dos desfechos adversos maternos e fetais. A meta da hemoglobina glicada é mantê-la ≤ 6% ao longo da gestação. Mas como esse é um exame que acaba sofrendo interferência de diversos fatores na gestação, devemos dar ainda mais atenção ao controle das glicemias capilares. A meta é manter a glicemia de jejum entre 70 e 95 mg/dL; glicemias antes das refeições ≤ 100 mg/dL e glicemias 1h após refeições entre 100 e 140 mg/dL na maioria dos casos.
Para isso, há a necessidade de intensificação progressiva e rápida do esquema de insulina devido ao aumento na sua resistência que acontece ao longo da gestação, chegando a haver um aumento médio de 50 a 100% na dose no terceiro trimestre quando comparada à dose pré gestação.
A INSULINA É SEGURA DURANTE A GESTAÇÃO?
A insulina é segura durante a gestação. Devido às suas características farmacológicas, ela não ultrapassa a barreira hemato-placentária de forma significativa e portanto não afeta o bebê. Contudo, as insulinas que são aprovadas pela Anvisa para uso na gestação, de acordo com a Sociedade Brasileira de Diabetes, são a NPH, Levemir (Detemir ®), Degludeca (Tresiba ®) Regular, Asparte (NovoRapid®), Lispro e Fast Asparte (Fiasp ®). As insulinas rápidas (Asparte ou Lispro) e ultrarrápida (Fiasp) são as insulinas de escolha para hiperglicemia pós refeição em pacientes com diabetes tipo 1 por apresentarem menor risco de hipoglicemias.
Para aquelas que engravidaram em uso de glargina, é preferível sua substituição, uma vez que é considerada classe C para uso durante a gestação pela Anvisa. Contudo, alguns estudos mostram que ela parece também ser segura na gestação e, em algumas situações, desde que a paciente esteja de acordo e ciente desses fatos, é possível manter seu uso.
POSSO USAR O LIBRE® DURANTE A GESTAÇÃO?
O Freestyle Libre® (Abbott ®) é um monitor contínuo de glicemia (CGM) intersticial, ou seja, que mede a glicemia “embaixo da pele”. Seu sistema é “flash”, o que significa que é necessário o escaneamento para a aferição da glicemia, apesar de registrar a curva da glicemia o tempo todo. No Brasil, é o único modelo amplamente disponível para uso.
Um grande estudo chamado CONCEPTT trial avaliou o uso desses monitores em 325 mulheres com DM1. As gestantes que utilizaram, comparadas às que não utilizaram, tiveram uma redução de hemoglobina glicada de -0,19%, ficaram mais tempo ao longo do dia dentro da meta de glicemia estipulada de 63 a 140 mg/dL (68% vs. 61%; p = 0,0034), tiveram menos hipoglicemias e houve uma redução no risco de bebês grandes para idade gestacional (GIG) de aproximadamente 50%, assim como de admissões em UTI neonatal (também próximo de 50%) e de hipoglicemias do bebê (45%). Portanto, o consenso de diabetes da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) recomenda que se considere seu uso em todas as gestantes com DM1, com ou sem uso de bomba de insulina. Mas atenção: Essa recomendação só é válida nesses termos para gestantes com diabetes tipo 1.
Ainda, vale lembrar que o Libre® deve ser considerado uma ferramenta adicional e não em substituição às medidas de glicemia capilar, sobretudo quando suspeita de hipoglicemias e quando houver alguma incongruência entre valores, uma vez que o Libre® pode apresentar uma discordância com a glicemia capilar em média de 11,8%.
Nas gestantes em uso, é recomendado atingir a meta de passar 70% do tempo no alvo (63 a 140 mg/dL).
MULHERES COM DIABETES TIPO 1 DEVEM USAR BOMBA DE INSULINA DURANTE A GESTAÇÃO?
O sistema de infusão contínuo de insulina (SICI) ou “bomba de insulina” não precisa obrigatoriamente ser utilizado na gestação. De acordo com os guidelines da American Diabetes Association e da SBD, não há dados conclusivos que evidenciam a superioridade desse sistema ao uso de múltiplas aplicações quanto a redução de risco de bebês GIG, mortalidade perinatal ou aumento de taxas de cesariana. Portanto, a decisão do uso de bomba de insulina deve ser individualizada.
QUAL A MELHOR VIA DE PARTO PARA GESTANTES COM DIABETES TIPO 1?
A melhor via de parto para gestantes com diabetes tipo 1 é de indicação obstétrica, ou seja, de acordo com características específicas de cada gestação. O diabetes em si não obriga que o parto seja realizado via cesárea, podendo acontecer por via vaginal. No entanto, é comum mesmo em gestantes que apresentam um bom controle glicêmico observarmos uma tendência à maior crescimento e ganho de peso fetal nas últimas semanas de gestação, o que pode acabar gerando a indicação de resolução da gestação de forma mais precoce.
COMO É FEITO O CONTROLE GLICÊMICO DURANTE O PERÍODO DO PARTO?
Durante o período do parto é necessário que adequações sejam feitas no esquema de insulina administrada, sobretudo em gestantes com diabetes tipo 1, onde há necessidade de manutenção da insulina basal mesmo em jejum. Para tanto, é fundamental ter um endocrinologista envolvido no cuidado dessa situação. Em geral, são feitas reduções na dose da insulina basal (em torno de 50%) e suspensão das doses de insulina das refeições quando a paciente estiver em jejum.
Imediatamente após o parto ocorre uma queda drástica na resistência insulínica e é necessário reduzir a dose total de insulina em cerca de 50 a 70% da dose utilizada, a fim de reduzir o risco de hipoglicemias.
PAPEL DO ENDOCRINOLOGISTA NO CUIDADO DAS GESTANTES COM DIABETES MELLITUS TIPO 1 NA GESTAÇÃO
O Endocrinologista diabetologista pode desempenhar um papel importante para guiar o cuidado do diabetes mellitus na gestação, auxiliando no planejamento, dieta e contagem de carboidratos, monitorização das glicemias capilares, indicação de dispositivos e manejo do tratamento, com o objetivo de trazer um bom controle do diabetes associado a uma melhor qualidade de vida e objetivando a redução de desfechos adversos tanto para a mãe como para o bebê.
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Referências:
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